tendo em vista a expectativa de vida humana, matematicamente, sem considerar o destino ou a órbita dos planetas ou vida após a morte, parece que cheguei à meia-idade.
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o copo está meio cheio ou meio vazio?
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minha mãe disse que sim, nasci em mil novecentos e oitenta e cinco, e a prova está no registro de nascimento.
também tem uma foto datada, 22/06/1985. sei que poderia ser qualquer bebê ensanguentado num pano azul hospitalar, mas dona Vera está na foto, e ela não tem outros filhos. bom, acho que ela não tem outros filhos. e é melhor acreditar porque, meu deus, imagina eu tratando um trauma desses em terapia. anos e anos.
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lembrancinha é uma palavra muito boa pra um presente. tem coisa mais preciosa que a lembrança? olho pra minha avó, com Alzheimer, e tenho quase certeza que não. o presente, afinal, é dependente da lembrança.
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meu copo de quarenta anos está meio cheio. ô sorte!
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ao invés de “parabéns, felicidades", o que mais ouvi no meu aniversário este ano, foi “não dá pra acreditar”.
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também me olho no espelho e acho difícil de acreditar. e quando fecho os olhos e procuro alguém que tenha quarenta anos, não encontro. mentalmente devo ter a mesma idade da minha aparência. e as apostas que me chegam são sempre muitas e nada assertivas, variando entre dezoito, vinte e dois, vinte e cinco, vinte e oito. mais raramente alguém joga na casa dos trinta.
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li em algum lugar por aí que a mente não envelhece.
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fomos visitar minha irmã, meu marido quem dirigia quando chegamos na portaria e a responsável pelo controle de entrada pediu o nome da passageira. eu, no caso. "qual o nome da sua esp…", ela diz e olha pra mim com ares de susto. depois continua, "qual o nome dela?”, desconsiderando a possibilidade de ser a esposa ao lado. brinco que chegará um dia em que acharão que sou a filha. ele não gosta, claro. mas é a vida, querido.
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o que sustenta o desejo de viver?
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a verdade é que sempre pareci mais nova. com doze parecia ter dez, com quinze parecia ter onze, com vinte parecia ter quinze, e por aí vai. jamais entrei em uma balada sem mostrar o documento de identidade, mesmo quando já tinha quase trinta anos, pouco antes do meu guri nascer. uma vez esqueci de levar, e tive que entrar em contato com umas dez pessoas até chegar no ouvido do dono da balada, por alguém que o conhecia, a notícia que anunciava minha maioridade civil e poder, enfim, entrar.
me arrependo de não ter feito uma série de fotos das expressões dos pacientes que chegavam até mim, logo quando me formei em fisioterapia, e muito tempo depois também, aliás. desconfiança, assombro, medo, dúvida. de tudo um pouco, menos naturalidade. não tem muito tempo, alguém me perguntou se era mesmo eu a professora de yoga que conduziria a prática.
achei que a maternidade me traria traços de maturidade, mas já são dez anos respondendo a pergunta de sempre, “sim, é meu filho”, esse mesmo que me veio outro dia, um tanto inconformado, perguntar porque todos os seus amigos acham que sou sua irmã. e ele já está quase do meu tamanho.
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gosto, confesso.
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muita gente pergunta o que faço. explico que já nasci assim, mas claro que também procuro ter hábitos saudáveis, exercício físico, análise, boa alimentação, beber muita água, hidratar a pele, meditação, yoga, e essa coisa toda de uma vida natureba, jamais excluindo o vinho, o café, e um pain au chocolat vez ou outra. além disso, sou bastante mercuriana. segundo a astrologia, uma forte influência de Mercúrio, no mapa natal, se manifesta numa aparência jovem. a Sandy deve ter também.
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só uso protetor solar quando subo montanhas ou na praia em dias de sol, entre às 10h e às 15h. e sou bicho que mora no mato. Mato Grosso Sul. não tem montanha e nem praia. sim, eu sei. desculpem o péssimo exemplo.
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não se iludam. meu corpo apresenta muitos sinais da meia-idade. dia desses meu pescoço travou por causa de uma dor de garganta. com vinte e dois anos, ia pro pagode com dor de garganta e voltava junto com o sol nascendo, depois dormia até a hora do almoço e acordava curada.
já não consigo acordar depois das 06h, o que faz com que a ideia de dormir tarde me pareça absurda, acho que os jovens de hoje não escutam e nem fazem músicas boas como antes, exatamente como meu pai achava quando a jovem era eu, sou a senhora que sempre leva um casaquinho, e só vou se tiver comida boa e lugar pra sentar.
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pensado melhor, talvez a idade mental seja diretamente proporcional à vontade de viver com os olhos despertos. me esforço - e me solto - pra isso, pra manter meu coração aberto diante de toda e qualquer beleza. cultivo ouvidos em escuta atenta, a pele tem que seguir arrepiando, o desejo tem que continuar me movendo. não, não esse desejo que o marketing nos impõe, ainda que eu ame comprar umas roupinhas. falo do desejo de dançar a música de dentro do peito, o desejo de mergulhar quando faz frio na barriga.
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quanto tempo faz que você não sente frio na barriga?
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no dia do meu aniversário uma pessoa me deu um presente, uma lembrancinha, escrevendo no direct no meu Instagram “você parece seguir o tempo das coisas, venceu a pressa”. achei a percepção de uma delicadeza bonita e atenta, coisa difícil de se encontrar em tempos de visualizações de dois segundos. não sei bem se venci a pressa, mas acordo cedo pra me atrasar com calma enquanto ela corre.
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o que tem pressa? pra chegar onde? e depois? e depois?
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o tempo, esse senhor de barba branca, paciente, impiedoso e infalível, gosto de olhar bem dentro dos seus olhos com amorosidade e gentileza. e pros seus passos, feitos de instantes que não voltam, e ali me inspirar a estar presente, cultivar lembranças. sim, é verdade, o tempo não pára, mas ele caminha devagar. e aos poucos chegam meu cabelos brancos. acendo uma vela, danço e reverencio todos.
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— Gael, já imaginou quando você estiver maior do que eu? vou poder encostar minha cabeça no seu peito.
— não quero que isso aconteça, mamãe. quero que você cresça.