dia desses fui ao cabeleireiro cortar só as pontinhas do cabelo, manter o comprimento curtinho que amo, e lembrei da primeira vez que resolvi me despedir das longas madeixas que carregava desde pequena e que foram sutilmente impostas pelo meu pai. devia ter treze ou quatorze anos, talvez, e meu cabelo ficou horrível e mal cortado por uma cabeleireira de origem duvidosa. sempre vejo minhas fotos antigas e penso meu deus que foi que fiz e porque meu pai não me amarrou, mas ainda assim sinto uma admiração por aquela pré-adolescente que queria ser ela mesma. caminho árduo.
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não consigo me lembrar se meu pai ficou muito bravo. o que me vem à memória é a sensação de uma decisão difícil entre ser bonita pra aquele que até então era meu maior amor ou caminhar com minhas próprias escolhas. penso que ele ficou furioso e orgulhoso. e eu passei a amar também o Eddie Vedder e o Axl Rose.
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casinha de bonecas ou bicicleta?
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fui cortar o cabelo numa véspera de eclipse na minha casa oito. vejam bem, sou leonina e tenho como regente o Sol, aquele pequeno corpo celeste luminoso nos revelando no céu. a casa oito é um buraco escuro escorpiano onde fiquei todo um mês - e mais, ainda que em menor intensidade - tendo que olhar pra lugares bem profundos agora claros, expostos, vulneráveis. complexo e fascinante numa mesma proporção.
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acho que um salão de beleza parece mesmo uma casa oito, pensando bem. um lugarzinho fechado onde transformações acontecem.
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era só pra cortar as pontinhas e o que tive foi uma epifania nos dois minutos e meio em que fiquei sozinha com os cabelos já lavados esperando Fernando. quando ele veio, pedi uma franja. não foi só um corte - e talvez nunca seja - o que se passou foi um alumbramento e meu inconsciente gritando pra que eu resgatasse alguma coisa importante de lá.
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Fernando corta minha franja e olho pro espelho e sou eu, penso alto com olhos em brasa. do reflexo, emergi.
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quantas mulheres cabem em um metro e cinquenta e nove?
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depois de me reconhecer com franja decidi comprar um tênis Vans. sim, aquela marca amada pelos adolescentes e jovens adultos, duas das classificações sociais nas quais já não me encaixo. e tudo bem, já vou fazer quarenta anos no mês que vem e sigo desencaixada. entrei na loja e todos os atendentes tinham a idade do meu sobrinho mais velho, mas ninguém me chamou de tia. ótimo. escolho e experimento um modelo lindo e maravilhoso de camurça caramelo e olho pro espelho e sou eu, penso baixo com os olhos em brasa. emergi de novo.
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quando em casa, percebo que o modelo que escolhi se chama old school. não é perfeito?
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o acaso é maravilhoso justamente porque ele é uma ilusão.
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no último final de semana assisti um filme lindo e gostosinho, “a lista da minha vida”. a protagonista se vê de frente com quem foi aos trezes anos numa lista de desejos que escreveu com essa idade, e ela é levada a cumprir todos os itens pra chegar num final feliz que inclui o amor verdadeiro. um amor verdadeiro encantador, aliás. blasé, sim, mas gosto. e me fez pensar um tanto.
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o que eu desejava com treze anos? será que minha menina pré-adolescente se orgulharia de quem nos tornamos? será que fomos deixando itens de uma possível lista pra trás?
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nos perdemos um pouco, querida. no entanto, comprei um Vans e cortei o cabelo e estou escrevendo como você queria quando desejava colocar palavras em jornais. nos perdemos um pouco, querida. no entanto, acasos não existem e o corpo foi me levando por um caminho de expressão mais longo e talvez mais rico e mais poético, cinestésico. nos perdemos um pouco, querida. e o pai não gostou quando fizemos a primeira tatuagem, mas já temos dez e está tudo bem e ele se acostumou.
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a mente envelhece?
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acredito que amadurece. ainda sou a minha menina de treze anos e mais um tanto de mulheres que fui descobrindo caminhando de tênis ou de botas prateadas ou descalça. descobri que meus pés não cabem mais em sandálias de salto alto que antes me faziam voar. a verdade é que não preciso de asas porque sou feita de vento. no espelho me reconheço nos cabelos curtos com franja, e também quando em mergulho de olhos fechados. meu corpo ainda vibra escutando Pearl Jam.
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